Sentia-me
pelado. Ou melhor, não me sentia pelado, eu estava literalmente pelado. Era esquisito.
Estava num shopping, parece. As
pessoas nem pareciam estranhar, comportavam-se com naturalidade, quase como se
eu não estivesse lá. Aliás, pareciam estar acostumadas a fazer isso. A ignorar.
Era bem fácil fazê-lo, se quisessem. Mais simples do que tentar buscar uma
solução, ou, como diz o bom e velho clichê, “encarar o problema de frente”.
Como se o problema tivesse olhos para ser encarado... Mas dessa vez, parecia
ser algo elevado ao seu cúmulo... Um homem nu no auge de sua feiúra no meio de
um lugar tido como seguro, tranquilo e bem frequentado, cheio de famílias com
suas criancinhas inocentes, não parecia algo que certos tipos gostariam de
ignorar... E se eu de fato fosse invisível?
“Não,
não é isso”, pensei comigo mesmo dentro do meu sonho, sem obviamente saber que
era um sonho. “Isso parece algum tipo de competição, talvez eu deva achar uma
roupa para vestir, e se eu conseguir isso antes dos outros, eu ganho”. Ganho o
quê, o direito de voltar para o mundo real? Não, não me parecia ser isso, não
poderia ganhar algo que o meu eu onírico não sabia que existia, um mundo mais
real, mais verossímil e menos louco, pelo menos à primeira vista. É, porque
quando você realmente acha que conhece o mundo real, percebe que ele não faz mais
sentido do que um sonho qualquer. Aliás, o “fazer sentido” é sempre uma coisa
relativa, depende do humor...
Se
realmente o objetivo daquela loucura de sonho era achar uma roupa para vestir,
não seria muito difícil vencê-la. Afinal de contas, estava num shopping. O que mais havia ali eram
roupas, caras e desnecessárias. Não naquele momento, em que elas eram tudo o
que eu queria. Mas elas eram caras. Portanto, para tê-las, era preciso
dinheiro. Procurei nos bolsos que não tinha, na carteira que não carregava
comigo, e não foi muito difícil chegar à conclusão de que eu não tinha nada.
Teria que roubar... Coisa amoral, decerto, mas por vezes estritamente
necessária. Aquela era uma daquelas vezes, meu eu onírico pensou.
Subi
correndo uma escada rolante. Sabia que havia uma loja de departamentos no
terceiro andar famosa por sua segurança relapsa. Se ninguém notasse que eu
havia entrado pelado e saído vestido, tudo acabaria bem, como deveria ser, como
haveria de ser, pelos sete deuses novos de Westeros...
Ali
estava ela, uma loja que mais parecia um galpão, enorme nas três dimensões,
assustadora em sua variedade, indo de bolinhas de pingue-pongue e fraldas
(infantis e senis) a compressores de ar para inflar balões e apoio para copos. “Atiramos
para todos os lados”, este deveria ser o slogan. Mas não, aquilo era uma
herança da Segunda Guerra Mundial, de repente me lembrei do que aprendera na
escola. Agora no mundo real. As mulheres passaram a trabalhar dentro e fora de
casa, e tinham que encontrar tudo o que precisavam comprar num lugar só, por
pura falta de tempo. Tudo bem, saber isso era de fato inútil, mas era um ótimo
tópico para se iniciar uma conversa, ou reanimá-la, haveria de usar aquilo mais
tarde, algum dia...
Estamos
de volta à loja de departamentos. Entrei da mesma forma de estava andando pelo shopping, normalmente. Ninguém parecia
notar minha presença mais do que o normal. No fundo da loja, pouco frequentado,
encontrei umas roupas de má qualidade, que poderia vestir escondido atrás do
suporte delas, grande o suficiente para me abrigar. Peguei uma calça, que era
por onde deveria começar, segundo o raciocínio do meu eu onírico. Ou melhor,
pensei ter pegado uma calça, porque quando olhei para minha mão, ela havia
desaparecido! “Estranho, isso”, pensei, e logo depois tentei pegar outra peça,
que também desapareceu. “Será que isso é contra as regras desse joguinho
imbecil?”. Deveria ser. Mas contra as regras da boa educação, mesmo nos sonhos
mais estranhos, era... bom... fazer no chão, ainda mais quando já se está
pelado. Precisava de um banheiro. Imediatamente.
Foi o
que fiz. Procurei um banheiro. Encontrei-o. No esforço do ato, posso ter me
agitado demais, e entrei naquele limiar entre o sonho e a realidade. Estava
quase acordando. Poderia voltar ao sonho, se quisesse, e continuar na
competição... mas não.
Deixei
o meu eu onírico ali nu no meio do banheiro mesmo. O meu avatar que se
virasse sozinho sem mim, no mundo dos sonhos.