sexta-feira, 22 de julho de 2011

De óculos e espelhos, todo mundo entende um pouco

          Era uma sexta-feira, férias de julho (chamam assim por pura convenção, mas meros quinze dias não mereciam nomenclatura tão nobre), sem perspectivas de uma viagem decente. Tinha que ir comprar meus óculos novos, meio grau acima do antigo, coisa que faz uma diferença... Queria uma cor nova, um preto, talvez, discreto, mas elegante e jovial. Não muito caro, lentes boas, anti-reflexo, relativamente durável, o suficiente para me deixar com cara de intelectual, superior, como de fato era, mas não antipático. Com isso em mente, resolvi ir a duas óticas, de perfis completamente diferentes, no centro da cidade mesmo.
            A primeira delas era mais ou menos grande, com laboratório próprio, o que reduzia o prazo de entrega de dois dias para duas horas. Tudo era muito branco, muito brilhante, muito limpo. Espelhos por todos os lados, cartazes de modelos, desconhecidas ou não, aqui e ali. O vendedor? Provavelmente o melhor que já vi nesses meus curtos anos de vida humana. Falava muito, e rápido, tinha conteúdo, respondia tudo, até mesmo perguntas não feitas, era convincente, diminuía o preço a todo o tempo, conseguia mentir elogiosamente bem. Na soma dos senões, tudo saía por 900 reais. Era pra ser 1100, disse ele. OK. Fui à outra ótica.
            Esta, em contraste, era pequena, acanhada. Um só andar, apenas dois cômodos (um deles devia ser um pequeno depósito, mas não tenho certeza, não entrei lá), sem laboratório próprio, óbvio. O número de óculos também era bem menor, dispostos num único balcão contínuo de vidro, que contornava dois lados da loja. O único vendedor, também o dono, era um homem de seus sessenta anos, extremamente simpático, sorridente, atencioso, tradicional. Quando uma mulher entrou perguntando se ele tinha lentes de contato, ele respondeu, com outro sorriso: “Não, não trabalhamos com lente de contato.”. Na primeira pessoa do plural, muito embora fosse só ele ali. Lembro também dele ter repreendido, de longe, uma mulher que preferiu desviar-se do caminho de um cego a ajudá-lo a atravessar a rua. Enfim. Tudo deu 700 reais. Mais barato do que a primeira até. Mas saí com a impressão que não era a mesma coisa, que os outros óculos eram melhores. Saí também com a impressão de que eu era um vil traidor. Condenando um pobre e honrado homem à falência, às garras ferozes e imperdoáveis da concorrência. Não de preço. Mas de aparência.
            Hoje, enquanto escrevo esta crônica, se assim merece ser chamado este texto, tento arranjar tempo para ir comprar meus óculos novos. Na ótica legal, é claro.  

sexta-feira, 15 de julho de 2011

O LIVRO QUE (QUASE) MUDOU A MINHA VIDA



Texto feito em fevereiro de 2011 para um trabalho de Redação da Professora Cleide Simões - 3º ano - Colégio Santo Antônio - Belo Horizonte - Minas Gerais

Como começar um texto sobre algo tão importante e determinante para a minha vida, direta ou indiretamente, e que envolve inúmeras e complicadas reviravoltas, destinado a alguém que nada sabe sobre ela? Visivelmente, decidi começar com uma pergunta retórica. Ou nem tanto.
Para ser inteiramente completo e claro a esse respeito, teria que citar vários episódios e situações que finalmente me compeliram a ler o tal livro que, evidentemente, não caberiam em 40 linhas. Por isso, tentarei ser o mais breve possível.
Tudo começou numa tarde de domingo (mentira, eu nem lembro), no final de 2001. Havia acabado de sair do cinema com meus pais e meu irmão, após assistir a um filme que, sem dúvida, iria marcar a minha vida. Era Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Eu tinha oito anos de idade na época e ficara encantado com todo aquele mundo mágico. Não tive dúvidas: fui à livraria daquele pequeno shopping mesmo e comprei o segundo livro da série. Comecei a lê-lo imediatamente, motivado pela leitura como nunca antes.
Lembro perfeitamente que não passei da página sessenta. Pelo jeito, o gosto pela leitura não seria algo assim tão fácil de adquirir. Como gostar de algo em preto e branco, estático e, pior, que requeria um considerável esforço mental?
Após essa grande decepção, fiquei mais uns dois anos sem ler nenhum livro por conta própria que não tivesse ilustrações ou letras grandes. Não me recordo com exatidão quando comprei o livro que, de fato e de direito, me transformaria num verdadeiro leitor. Provavelmente logo após o terceiro filme da saga ser lançado, uma vez que foi o quarto livro, Harry Potter e o Cálice de Fogo, que definitivamente mudou a minha vida.
Dessa vez, já um pouco mais “velho” (dez ou onze anos), consegui terminar o livro. Não conseguia parar. Na verdade, por vezes tive que retardar um pouco a leitura para que o livro demorasse mais para acabar. Agora sim, eu havia aprendido não a ler, mas a gostar de fazê-lo.
O importante aqui não é o conteúdo nem as mensagens do livro em si. O importante é que, depois daquele dia, eu não era apenas mais um brasileiro, que lê dois livros por ano (via de regra, uma disfarçada auto-ajuda do Paulo Coelho e a Bíblia). Uns seis anos depois de O Cálice de Fogo, tenho mais de 120 livros comprados e lidos e outros tantos emprestados, entre eles grandes clássicos da literatura brasileira e mundial.
Não fosse por Harry Potter, hoje estaria lendo Crepúsculo.



domingo, 3 de julho de 2011

PRENCONCEITO LINGUÍSTICO – O QUE É, COMO SE FAZ, de Marcos Bagno

O livro “Preconceito Linguístico”, de Marcos Bagno, já começa, nas suas primeiras linhas, com o que pretende defender ao longo de toda a obra: “só existe língua se houver seres humanos que a falem” e “o ser humano é um animal político”. A partir apenas dessas duas frases, poder-se-ia fazer um pequeno resumo das ideias de Marcos Bagno: todo ser humano é um falante natural e devidamente competente de sua própria língua, e os chamados “erros de português”, que ele também critica, são puramente uma invenção política.
Na opinião de Marcos Bagno, “O preconceito linguístico está ligado [...] à confusão que foi criada [...] entre língua e gramática normativa.”. A partir daí, o autor vai enumerando e desconstruindo oito mitos existentes com relação ao português, de maneira geral.
“Mito nº 1 – ‘O português do Brasil apresenta uma unidade surpreendente’”: segundo Marcos Bagno, é o mais grave de todos, por estar tão enraizado na mentalidade brasileira, que até “boas observadoras dos fenômenos sociais brasileiros, se deixam enganar por ele.”, antes de citar Darcy Ribeiro como uma destas pessoas. O problema deste mito consiste no fato de que, “ao não reconhecer a verdadeira diversidade do português falado no Brasil, a escola tenta impor sua norma linguística como se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os quase 190 milhões de brasileiros (...)”. Para o autor, não existe língua no mundo totalmente uniforme e homogênea, e esta diversidade, no Brasil, decorre, principalmente, não só da extensão territorial, mas da “trágica injustiça social”. Ele continua: “Como a educação de qualidade ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio das formas prestigiadas de uso da língua.”. Para Marcos Bagno, a conseqüência disto é que muitos brasileiros deixam de usufruir de serviços essências que são direito deles devido à barreira imposta pela “linguagem empregada pelos órgãos públicos”.
“Mito nº 2 – ‘Brasileiro não sabe português/ Só em Portugal se fala bem português’”: na opinião do autor, este mito é originado do “sentimento de sermos até hoje uma colônia dependente de um país mais antigo e mais ‘civilizado’.”. A partir daí, Marcos Bagno enumera algumas das muitas diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal. Para o autor, “As regras gramaticais consideradas ‘certas’ são aquelas usadas pelos ‘falantes cultos’ de lá, que servem para a língua falada lá, que retratam a língua que os portugueses falam.”. Ou seja, as regras do português de Portugal não servem, necessariamente, ao português brasileiro. No final do capítulo, Marcos Bagno usa a obra Emília no País da Gramática, de Monteiro Lobato, para representas a figura do “gramático autoritário e intolerante” ridicularizado por Lobato.
“Mito nº 3 – ‘Português é muito difícil’”: na opinião de Marcos Bagno, “Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical literária de Portugal, as regras que aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no Brasil.”. Novamente, o autor repete sua máxima: “Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua.”. Porém, como “o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português”, regras que não são mais seguidas por praticamente nenhum falante continuam sendo ensinadas nas escolas. Por fim para Marcos Bagno, “a ideia de que ‘português é muito difícil’ serve como mais um dos instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas.”. Saber português não é decorar uma nomenclatura confusa e, na prática, inútil.
“Mito nº 4 – ‘As pessoas sem instrução falam tudo errado’”: Marcos Bagno busca explicações científicas e históricas para, por exemplo, a transformação do L em R nos encontros consonantais, como em Cráudia, ao afirmar que tal transformação já ocorreu em outras palavras, hoje usadas naturalmente e consideradas “certas”, como cravo, escravo e fraco.  Ou seja, “o fenômeno que existe no português estigmatizado é o mesmo que aconteceu na história do português prestigiado, e tem até um nome técnico: rotacismo.”. Além disso, Marcos Bagno também cita o preconceito contra a fala de determinadas classes sociais, usando como exemplo o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão.
“Mito nº 5 – ‘O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão’”: segundo Marcos Bagno, “Esse mito nasceu, mais uma vez, da velha subserviência em relação ao português de Portugal.”. Isso porque, no Maranhão, ainda se usa, com regularidade, o pronome tu seguido das formas verbais clássicas, enquanto que, na maior parte do Brasil, houve uma reorganização do sistema pronominal, com o tu sendo substituído por você. Porém, Marcos Bagno ainda indica alguns erros cometidos por esses mesmos maranhenses, provando a inconsistência deste mito. O autor concluir: “É preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única comunidade de falantes o ‘melhor’ ou o ‘pior’ português e passar a respeitar todas as variedades da língua, que constituem um tesouro precioso de nossa cultura.”.
“Mito nº 6 – ‘O certo é falar assim porque se escreve assim’”: Marcos Bagno começa exemplificando o fenômeno da “(...) variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares (...)”. A partir daí, discute “(...) uma tendência (mais um preconceito!) muito forte no ensino da língua de querer obrigar o aluno a pronunciar ‘do jeito que se escreve’, como se fosse a única maneira ‘certa’ de falar português.”. Além disso, a escrita é apenas “(...) uma tentativa de reprodução [...] porque sabemos que não existe nenhuma ortografia em nenhuma língua do mundo que consiga reproduzir a fala com fidelidade.”.  Além disso, a escrita não dá conta de todos os fenômenos prosódicos, e “(...) a ortografia sempre é fixada segundo critérios bastante diversos, quase nunca rigorosos do ponto de vista de uma representação mais lógica e sistemática.”.
“Mito nº 7 – ‘É preciso saber gramática para falar e escrever bem’”: Marcos Bagno dá exemplos quase incontestáveis para desconstruir esse mito: “Afinal, se fosse assim, todos os gramáticos seriam grandes escritores (o que está longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especialistas em gramática.”. O autor continua: “Ora, os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles!”, e dá exemplo de grandes escritores brasileiros, como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis que admitiram não entender nada da área. Marcos Bagno conclui dizendo que “(...) é infinitamente mais útil e relevante ensinar alguém a tirar proveito de uma oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo na construção de um bom texto do que fazer essa pessoa decorar esses nomes todos (...)”. Ou seja, “(...) é infinitamente mais útil e relevante aprender a usar a língua e não aprender sobre a língua.”.
“Mito nº 8 – ‘O domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão social’”: assim como o mito nº 1, este tem muito a ver com questões sociais. Marcos Bagno começa argumentando, com certa ironia: “(...) se o domínio da norma-padrão fosse realmente um instrumento de ascensão na sociedade, os professores de português ocupariam o topo na pirâmide social, econômica e política do país (...)”. Em contrapartida, pode haver um fazendeiro milionário e analfabeto, diz ele. “Achar que basta ensinar a norma-padrão a uma criança pobre para que ela ‘suba na vida’ é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas nas penitenciárias para resolver o problema da violência urbana.”. Ou seja, a questão da desigualdade social está ligada a muitos outros fatores que não o conhecimento da norma-padrão da língua (cor, classe social, sexo, origem geográfica), e não é necessariamente determinante para a tal “ascensão social”.
O círculo vicioso do preconceito linguístico”: é o responsável pela transmissão e perpetuação do preconceito linguístico. É composto pela gramática tradicional, os métodos tradicionais de ensino e os livros didáticos. Entre eles, há um quarto elemento, que Marcos Bagno chama de comandos paragramaticais. A partir daí, Bagno passa a criticar os autores desse tipo de obra, evidenciando pontos em que há explícito preconceito contra aquelas pessoas que não seguem a gramática normativa.
Depois disso, Marcos Bagno sugere maneiras de desconstruir o preconceito linguístico, enumerando três problemas básicos: a grande quantidade de analfabetos no Brasil, o fato de a maioria das pessoas plenamente alfabetizadas não cultivarem nem desenvolverem suas habilidades linguísticas e a nebulosidade que gira em torno do termo norma-padrão. Ou seja, a língua considerada “certa” pela gramática nem sempre é a predominante na fala e na escrita da parcela mais culta da população, chamada por Marcos Bagno de variedades urbanas de prestígio. Portanto, há visível distinção entre o ideal (ditado pela gramática normativa) do real (a verdadeira língua falada e escrita pelas classes privilegiadas do Brasil).      
Marcos Bagno também clama por uma mudança de atitude, que seria uma maior investigação da língua real falada pelos brasileiros. “A língua é viva, dinâmica, está em constante movimento – toda língua vida é uma língua em decomposição e em recomposição, em permanente transformação.”.
Para o autor, o ensino de português está formando professores, não necessariamente usuários competentes da escrita mais monitorada. Ou seja, “O ensino da gramática normativa mais estrita, a obsessão terminológica, a paranoia classificatória, o apego à nomenclatura – nada disso serve para formar um bom usuário da língua (...)”. Para exemplificar isso, usa uma metáfora sobre auto-escolas e a formação de um motorista.
Adequação X Aceitabilidade: significa buscar um equilíbrio entre “(...) nos adequar à situação de uso da língua em que nos encontramos (...)” e considerar “(...) o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo por parte de nosso interlocutor ou interlocutores.”. 
Outra situação bastante interessante discutida por Marcos Bagno é o “(...) mito ingênuo de que a linguagem humana tem a finalidade de ‘comunicar’, de ‘transmitir ideias’ [...] a linguagem é muitas vezes um poderoso instrumento de ocultação da verdade, de manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento.”.