quinta-feira, 5 de abril de 2012

Horror no Ônibus


Aquele dia estava quente. Anormalmente quente. Mais do que o normal, bem mais, na verdade. Peguei o ônibus, que também estava mais cheio do que o normal. Tive que ficar em pé. Tudo parecia estar pior naquele dia. Um dia ruim, com R maiúsculo. E ainda ia ficar bem pior.
            Assim que entrei, decidi ir bem para o fundo do ônibus. De lá, teria uma visão melhor dos assentos que potencialmente ficariam vazios. Uma posição estratégica, mesmo. Eu era um cara inteligente. Ainda sou, pelo menos é isso que eu espero. Enfim... eu fui para os fundos do ônibus, é o que importa. Vamos direto ao assunto, o mais direto possível sem que o simples ato de contar essa pequena história me deixe ainda mais traumatizado. Vamos lá, ou let’s go, como diriam os nossos (nem) tão amados amigos americanos.
            Um ou dois pontos depois de eu ter entrado (não me lembro muito bem deste pequeno detalhe, pois tudo o que se seguiria a partir dali iria apagar todo o resto da minha mente privilegiada), entraram cinco ou seis trabalhadores, uma metade de cada sexo, que pelos modos e linguagem, perdoem-me a minha visão um tanto preconceituosa, desproviam da quantidade adequada de escolaridade. Chegaram falando alto, quase aos gritos, o que, via de regra, é sempre um péssimo sinal. Aquilo não tinha como terminar bem.
            Um dos homens, um quarentão com a barba por fazer, o crachá de uma empresa de assistência social e camiseta branca meio manchada, teve a má ideia de se alocar bem à minha frente. Ao lado dele, estava uma das mulheres, de costas para mim, o que me permitia ver apenas os seus cabelos, nada marcante, positiva ou negativamente.
            Não demorou muito para o homem do crachá começar o seu showzinho particular. Primeiro começou falando do trabalho, entediante e levemente burocrático, para os seus outros pares, em pé atrás de mim, perto das portas traseiras do ônibus. Nada de mais. Mas algo extremamente irritante para os demais passageiros, que ouviam sem querer estar ouvindo. Ainda mais porque, evidentemente, aquilo estava sendo contado aos berros, a fim de cobrir os barulhos feitos pelo motor e balançar do ônibus, e suprir a distância considerável entre os interlocutores.
            A partir daí, a coisa só piorou. O assunto descambou para o futebol, evocando uma discussão acalorada entre os homens-amigos e suscitando olhares irritados dos passageiros sentados mais à frente. Em seguida, começaram a falar de música ruim, como se ela fosse boa. Aí começaram a cantar músicas ruins. Nada de Beatles ou Loreena McKennitt. Só pagode de bandas genéricas e sertanejo de duplas aleatórias. Depois a coisa chegou ao ponto decadente e vergonhoso de se mencionar personagens e bordões do Zorra Total.
            Aí, tudo foi ladeira abaixo mesmo. Um arrepio de, digamos, desconforto, surgiu no hálux (dedão, para os leigos) do meu pé direito, subiu pelas minhas pernas e foi se depositar com um regozijo de alívio bem lá na boca do estômago. Aquilo tinha passado dos limites, mesmo. Zorra Total? Zorra Total??? É sério isso? Às vistas de todo mundo, falar tamanha obscenidade?
            Mal sabia eu que aquilo estava prestes a chegar ao ápice da loucura e do mal-gosto. Como tudo na vida, o auge de algo ruim pode ser visto de maneira positiva ou negativa. Negativa porque você está prestes a enfrentar um dos piores momentos da sua vida. Positiva porque, depois do ápice, segue-se uma ladeira rumo a algo melhor, ou no mínimo menos pior. É assim que eu prefiro ver as coisas.
            O ápice daquele momento de loucura e mal-gosto no ônibus foi protagonizado pelo nosso odiável amigo da assistência social e pela mulher-amiga em pé à sua frente. Por algum motivo que eu ouso não saber decifrar, o assunto descambou para os lados sexuais, e o quarentão com a camiseta manchada começou a elogiar as formas glúteas da sua amiga. Passava as mãos levemente ao redor da dita cuja, e enumerava inúmeras qualidades geométricas, com uma voz suave e um sorrisinho dominando o olhar. A mulher, não tão desconfortável a ponto de não se mexer do lugar, murmurava fracamente algumas palavras de repreensão. Aquele momento de puro horror, nojo e desgosto perpassou pelos meus olhos. Dei uns passinhos para trás, num ato de autodefesa, e vi...
            As tais formas glúteas da mulher não eram nada elogiáveis. Na verdade, ela devia estar no mínimo uns cinquenta quilos acima do peso ideal. Vejam bem, não estou pregando a ditadura da magreza, prejudicial em inúmeros aspectos, os quais não cabe mencioná-los aqui. O que estou querendo dizer é que... o homem estava, não paquerando, mas, de uma maneira irônica, sádica e covarde, humilhando-a em pleno espaço público, se divertindo com o peso extra da provável colega de trabalho. Um bullying cometido por um homem adulto, contra uma mulher adulta, na frente de várias outras pessoas adultas.
            O que eu quero dizer com isso? Qual a mensagem que este acontecimento trás a vocês leitores? Vários, eu diria, e nenhum. Primeiro, que tudo que está ruim pode piorar. E geralmente piora mesmo. Segundo, que depois de piorar, geralmente se atinge o fundo do poço. E a parte boa de se atingir o fundo do poço, na verdade a única parte boa, é que, depois dele, só existe o Inferno, ou, mais precisamente, o núcleo da Terra. É difícil chegar até lá, na verdade até hoje ninguém nunca conseguiu. Ou seja: normalmente, o fundo do poço é o pior lugar ao qual você pode chegar. A partir daí, ou você continua na mesma, ou, por um golpe do acaso, encontra uma escada e começa a subir em direção à tão famosa luz no fim do túnel. Foi o que me ocorreu quando aquelas pessoas odiáveis e que falavam alto saíram do ônibus, e eu encontrei um lugar para sentar. Outro ensinamento: nunca converse, paquere, abrace ou beije no interior de um meio de transporte coletivo. É nojento, anti-higiênico, desrespeitoso e irritante. A não ser que você esteja sentado e a pessoa com quem você realiza estas atividades esteja igualmente sentada ao seu lado.
            Ah, e uma última coisa, que eu lembrei agora que parei para pensar: talvez eu seja o grande vilão desta história. Talvez o homem realmente estivesse paquerando a gorda. Talvez ele realmente visse nela uma mulher bonita, ou a sua última chance antes da andropausa.

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