quinta-feira, 20 de maio de 2010

A mansão, a paranoia e o dinheiro - Parte II


Enfim, nos deparamos com a enorme porta de carvalho encimada por uma placa que dizia: “Seja bem-vindo, querido visitante! A casa é toda sua!”. O criado sacou do bolso um enorme maço de chaves, escolheu uma e a enfiou no buraco da fechadura. Um clique se fez ouvir, e a porta se abriu com um rangido agudo e irritante. O chão do hall de entrada era quadriculado, em preto-e-branco. Logo em frente, uma escada simples subia ao primeiro andar. Duas portas, uma de cada lado, completavam a arquitetura do aposento.

_O Sr. Bronco está na biblioteca, no segundo andar, se o senhor se lembra onde é. – resmungou o criado. Subi, sozinho, quatro cansativos lances de escada. Quando cheguei ao segundo pavimento, pude apreciar o silêncio que reinava naquela construção antiquíssima. Percorri alguns metros do corredor, e entrei por uma larga porta de um marrom suave. Empurrei-a temeroso, e ela se abriu com facilidade. Nesse exato momento, meu tio veio em minha direção, limitado pela artrite que atacava suas articulações, com os braços abertos receptivamente. Abraçamo-nos.

_Que bom vê-lo aqui, Davi! É tanta coisa acontecendo! Preciso muito da sua ajuda, meu rapaz. Sente-se, sente-se! – disse ele, apontando a cadeira em frente à sua escrivaninha. Prateleiras e mais prateleiras repletas de livros predominavam sobre o resto do ambiente. Quase todos os tipos de literaturas, ciências, histórias e culturas estavam ali. Eu me sentei na cadeira indicada por meu tio, ansioso por aquilo que estava por vir.

Meu tio começou a contar que suspeitava de um dos criados, o Marcos Borba, aquele mesmo que viera me atender. Tinha medo dele, dos seus modos e dos seus hábitos. Ele pensava que o empregado tinha segundas intenções: forçá-lo a passar todos os seus bens a ele e depois matar o “Sr. Bronco”.

_Por que o senhor não chamou a polícia? – eu perguntei.

_Não quero chamar a atenção, Davi. Poderia acabar com a minha saúde, toda essa confusão...

_Mas o que faz o senhor pensar assim?

_Há alguns dias atrás, Davi, tarde da noite, enquanto eu ia à cozinha pegar um copo de leite – não gosto de acordar os criados de madrugada, sem necessidade - encontrei o Borba com algumas folhas de papel na mão, escrevendo freneticamente. A porta estava entreaberta, e quando ele percebeu que eu o estava olhando, imediatamente guardou o maço de folhas na gaveta de escrivaninha do quarto dele. Eu perguntei ao Borba o que ele estava fazendo, mas ele não quis responder, disse apenas que estava fazendo as contas do mês. Como isso é algo bastante pessoal, preferi não me intrometer mais. Apenas disse boa-noite e fui embora.

“Entretanto, pensando com meus botões, me indaguei porque Borba iria fazer as contas do mês em plena madrugada, afinal de contas ele tem dois dias de folga por semana! Depois me lembrei dos olhos exaustos dele.”

“Uns dias mais tarde, Borba me fez perguntas inesperadas sobre as minhas outras propriedades aqui das redondezas. Tentem me desviar do assunto, mas o olhar dele era tão penetrante que não pude resistir muito tempo, e acabei falando de todos os meus bens, tudo, tudo!”

_Bom... mas talvez tenha sido por pura curiosidade, não, tio? – eu perguntei.

_O Borba trabalha para mim há quase doze anos, e ele nunca me fez perguntas do tipo. – rebateu o meu tio.

_E esse tempo tão longo não seria mais um motivo para o senhor confiar no Marcos Borba? Quero dizer, por que ele não fez isso há mais tempo?

_Davi, acontece que... – acabei não sabendo o que acontecia, pelo menos por aquele instante. Um outro criado do meu tio acabou entrando na biblioteca, carregando uma bandeja de prata com um grande bule branco, duas xícaras e um pratinho com algumas torradas. Ele era novato, pois ainda não o conhecia. Era jovem, baixinho, com os cabelos muito pretos e brilhantes penteados para trás da cabeça. Tinha um nariz delicado e estranhamente feminino, olhos opacos e sem emoção. Sem falar nada, pôs a bandeja sobre a mesa do meu tio, serviu café em ambas as xícaras e saiu fazendo o mínimo de barulho possível.

_Esse garoto é novo aqui – disse Fildo Bronco, confirmando as minhas suspeitas. – Já o contratei pensando no caso do Borba. Não sei o que poderá vir a acontecer, então... é melhor prevenir do que remediar, não é? – disse ele, em meio a uma curta e rouca gargalhada. Num repente voltou a ficar sisudo como de costume, e perguntou:

_Onde foi mesmo que paramos?

_Eu perguntei ao senhor se o fato de Marcos Borba trabalhar há tanto tempo para o senhor não o fazia...

_Ah, sim, agora me lembro! Bom... eu não duvido nada de que durante todos esse quase doze anos ele esteve estudando os meus movimentos, os meus hábitos, a minha personalidade e as minhas fraquezas. Esse tipo de gente é capaz de qualquer coisa para enriquecer.

_E o que o senhor acha que eu devo fazer? – eu perguntei, tentando ser o menos rude possível ao indagar sobre o meu papel naquela situação.

_Eu gostaria muito que você ficasse morando aqui comigo por uns dias, Davi. Eu tenho estado muito apavorado nos últimos dias, como você talvez imagine, e um jovem como você poderia ser de grande valia para mim.

Confesso que me senti inebriado por tais elogios, mas não pude deixar de pensar como seria viver ali por poucos dias que fosse. A casa toda cheirava a mofo (sou alérgico), e alguns quadros que retratavam figuras estranhas e indistinguíveis me amedrontavam desde que era pequeno. É verdade que eu não trabalhava, nem tinha nenhum compromisso mais importante na cidade, e aqui vejo a necessidade de contar um pouco mais sobre a minha vida pregressa.

Sou filho de um comerciante que, há uns anos atrás, era muito bem-sucedido na região de Rios Verdes, um lugarzinho de clima frio e bem montanhoso, hoje inexistente, incrustado numa serra no Sul de Minas. Meu pai, Afonso Fontes, vendia de tudo um pouco, mas com o passar dos anos se especializou na comercialização de lã. Após duas temporadas de um bom lucro, “Seu Afonso”, como era chamado, decidiu comprar uma enorme propriedade onde passou a produzir a própria lã, podendo ter uma margem de lucro bem maior do que a que tinha quando comprava o material de outros produtores.

Minha mãe, Celina, era uma mulher indescritível. Tinha um excelente coração, uma alma pura e solidária. Pela rigidez dos tempos, não pôde avançar profissionalmente, mas há quem diga que ela estava por trás das melhores ideias do meu pai. Infelizmente, acabou tendo uma morte cruel aos cinquenta e dois anos, ao levar um coice de uma das novas ovelhas. Dias depois, “Marinha” foi sacrificada e jogada nos Rios Verdes e sua correnteza assustadora. Nunca tive tanto prazer em matar um bicho...

Voltando aos negócios do meu pai, poucos meses antes de morrer ele vendeu todos os seus bens e foi morar, levando-me com ele, numa casa bastante confortável no centro do vilarejo. Moro lá até hoje, e vivo com o resto da herança deixada pelo meu pai. Felizmente, sou filho único.

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